sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

MACHADO DE ASSIS



Machado de Assis
Em
O Espelho





“Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro.
Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir.
A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavarina, um tambor etc.
Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja.
Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.
Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. “Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração”.
Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele.
Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

- Não?

- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell.
São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável.
Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos.
Pela minha parte, conheço uma senhora, — na verdade, gentilíssima, — que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a Rua do Ouvidor, Petrópolis...”





ASSIS, Machado de. Contos Escolhidos. Seleção e apresentação de Roberto Alves. São Paulo: Jornal O Globo/Klick Editora, 1997.

Sobre o autor:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis

Um comentário:

Alessandra Espínola disse...

cada um tem o seu botão de camisa, mas há também, quem use camisa sem botões... Adoro Machado. Beijoooo))