sexta-feira, 14 de novembro de 2008

PEDRO ABELARDO



Pedro Abelardo
Em
A História das Minhas Calamidades.


(trechos)





“Havia na cidade de Paris certa mocinha chamada Heloísa, sobrinha de um cônego chamado Fulberto, que quanto mais a amava tanto mais cuidadosamente procurava que ela se adiantasse em toda a ciência das letras, tanto quanto possível”.


“Acreditei que essa mocinha cederia diante de mim tanto mais facilmente quanto eu sabia que ela possuía e amava a ciência das letras”.


“Para que isso acontecesse, tratei com o mencionado tio da moça, por intermédio de alguns dos seus amigos, para que ele me recebesse em sua casa, que ficava próxima da minha escola, por um preço qualquer que ele estipulasse...”.


“Nessa matéria fiquei imensamente admirado com a sua grande ingenuidade, o que não me espantou menos que se ele confiasse uma tenra ovelha a um lobo faminto”.


“Que mais direi?
Primeiro nós nos juntamos numa casa e depois no espírito.
Assim, com a desculpa do ensino, nós nos entregávamos inteiramente ao amor, e ao estudo da lição nos proporcionava as secretas intimidades que o amor desejava”.


“E quanto mais essa volúpia me dominava, tanto menos eu podia consagrar-me à filosofia e ocupar-me da escola”.


“Com efeito, fato tão patente não poderia enganar senão a poucos ou a ninguém, creio, a não ser àquele para cuja vergonha isso concorria principalmente, a saber, o próprio tio da mocinha”.


“Mas o que se vem a saber por último, em todo o caso, sempre se acaba por saber, e não é fácil esconder de uma pessoa aquilo que todos já conhecem”.


”Não muito tempo depois, a mocinha verificou que estava grávida, e logo me escreveu a respeito disso com a maior alegria, querendo saber o que eu próprio resolvia sobre o que devia ser feito.
Assim, certa noite, enquanto o seu tio estava ausente, conforme combináramos, eu a tirei às escondidas da casa do tio e a conduzi sem demora para a minha terra natal, onde ficou a viver junto com minha irmã até quando deu à luz um filho chamado Astrolábio”.


“Enfim, bastante compadecido de sua excessiva inquietação e do engano que o amor lhe infligira como a maior traição, e acusando-me severamente a mim próprio, fui procurar o homem, suplicando-lhe e prometendo-lhe qualquer reparação por tudo isso e que ele próprio decidiria qual devia ser”.


“Ora, logo que nasceu o nosso filho, depois de tê-lo confiado à minha irmã, voltamos ocultamente a Paris e, depois de poucos dias, tendo passado a noite numa igreja entregues a uma secreta vigília de orações, aí mesmo, de madrugada, estando presentes o tio dela e alguns amigos seus e meus, fomos unidos pela benção nupcial”.


“O tio dela, porém, e seus familiares, procurando uma consolação para a sua desonra, começaram a divulgar o matrimônio que havíamos contraído e a violar a respeito disso a palavra que me haviam empenhado”.


“Quando me inteirei do que acontecia, enviei-a para certa abadia de monjas, perto de Paris, chamada Argentuil, onde ela outrora, quando menina, fora educada e instruída”.


“Tendo ouvido o que se passara, o tio dela e os seus parentes ou cúmplices acharam que eu já zombara imensamente deles e que, ao fazê-la monja, eu queria desembaraçar-me dela facilmente.
Donde, profundamente indignados e mancomunados contra mim, certa noite, enquanto eu repousava e dormia num quarto retirado da minha residência, tendo corrompido com dinheiro o meu servidor, puniram-me com a vingança mais cruel e vergonhosa, e de que o mundo tomou conhecimento com o maior espanto, isto é, cortaram aquelas partes do meu corpo com as quais eu havia perpetrado a façanha que eles lamentavam”.


“... mal ainda eu me restabelecera da ferida, que os clérigos vieram ter comigo, solicitando tanto ao meu abade quanto a mim, com súplicas contínuas, para que eu agora me consagrasse ao estudo pelo amor de Deus, já que até então eu só o fizera pela ambição do dinheiro e do louvor”.


“Eles observavam que eu agora reconheceria ter sido tocado pela mão do Senhor principalmente para que, mais livre dos prazeres carnais e afastado da vida tumultuosa do mundo, eu pudesse dedicar-me ao estudo das letras e tornar-me verdadeiramente um filósofo de Deus e não do mundo”.







ABELARDO, Pedro. “A História das Minhas Calamidades”. Tradução do Prof. Dr. Ruy Afonso da Costa Nunes. In. CIVITA, Victor (Editor). Santo Anselmo de Cantuária, Pedro Abelardo. 1ª. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores)


Sobre o autor:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Abelardo

Um comentário:

Anna Flávia disse...

Mocinha, Paris... lembrei logo da Amelie..